sábado, 19 de julho de 2014

[Belnegro] Capitulo 4

No ônibus de volta para casa divido um acento com Alexia. Os murmúrios ao nosso redor parecem não cessar desde que saímos da escola. A inspetora nos disse para estarmos prontos as 07:00 hrs que um carro da PFAC irá nos buscar em casa e nos levar até o Estado A. Nossa secretária padrão irá junto conosco de nossa cidade ate nossos dormitórios para nos ajudar a nos instalar e tirar quaisquer duvidas. Porém, com as horas passando e os pensamentos pesando em nossas mentes a melancolia encontra seu caminho ate nós. Principalmente, em mim.
- Eu fico pensando na minha família. Não consigo parar de pensar na saudade que sentirei deles. - ela diz chateada.
- Parece que voce andou lendo a minha mente. Será um passo sem volta.
Na verdade, estava pensando mais em mim mesma. Nos olhamos por alguns segundos e vejo o meu medo refletido nos olhos dela mesmo que eu nao houvesse dito uma palavra.
- Voce acha que vai ficar bem? Voce sabe... - ela diz cochichando.
- Preciso pensar que sim. Mas, nao a como saber.
- Talvez, voce devesse ficar. O CC nao é um lugar muito agradavel.
- Eu sei. Mas, nao posso. Preciso tentar.
Ela nao sabia de tudo que eu ja tinha passado e nem como eu me sentia de verdade sobre tudo isso. Eu me mostrava inteira mesmo depois de um surto. Se eu chorava, era escondida de todos. Mesmo assim, ela me da um olhar triste como se pudesse ver atraves do meu corpo, e visse a dor la dentro.
Porem, preciso tentar. Nao posso deixar de fazer coisas novas por medo. Nao devo me retrair sempre. É o que digo a mim mesma para nao deixar-me esmurecer. De repente, Alexia me abraca, e suspiramos no ouvido uma da outra. Nem sempre se precisa de palavras para confessar os sentimentos.  Assim que ela me solta, aperta o botão indicando que vai descer na próxima parada.
- Nos vemos amanhã. "E lembre-se: A prática da lei molda o cidadao a favor da paz!"
Ela diz imitando Roger em uma tentativa de levantar nossos animos. Sacudo a negatividade para longe.
- Até amanhã! E vê se nao vai roer todas as unhas.
- Pode deixar! Nao tenho mais unhas. - ela diz enquanto desce do onibus.
Um pouco depois, me ergo da cadeira e vou em direção a porta de saida. Agora que não tenho mais Alexia para me levantar o astral com seu humor, não me sinto mais bem. Cada passo que dou parece de uma sentenciada a morte. Eu deveria estar feliz. Ganhei uma das vagas mais disputadas do país para uma profissão de alto status, irei morar no melhor e maior estado, não passarei mais nenhuma necessidade e estarei ajudando minha família. Eu deveria estar em êxtase. Contudo, sinto como se algo muito ruim estivesse me esperando lá. Ja vi inumeras pessoas serem levadas para os Centros de Contencao. Cadeirantes, lunaticos, pessoas aparentemente normais. E nunca mais se ouvia falar delas.
Não tenho amigos fora Alexia e tampouco namorado. Não vou deixar para tras ninguém menos que os meus pais que só tem a mim para cuidar, e se preocupar. Deveria estar mais triste por eles. Pelo menos, é o que repito a mim mesma para me acalmar.
A porta se abre, e desço. Olho o ônibus seguir na avenida até o perder de vista. Então, faço meu próprio caminho. Olho para o relógio de pulso, e ele marca 12:00 hrs. Hora do almoço. Meus pais devem estar em casa, mas eles não esperao que eu chegue agora. Era para eu estar na escola. Suspiro no momento em que um carro da PFAC passa vagarosamente por mim. So nao me assusto porque conheco o policial que o dirige. O policial Rodrigues, amigo do meu pai, é quem está no volante. Ele acena para mim e passa direto. Ele poderia me dar uma carona até em casa, mas de forma ilegal. A NL possui uma lista com inúmeras infrações e ate a menor delas tem punições severas. Então, me contento em caminhar os três quarteirões.
Ando rapidamente para chegar logo em casa para poder contar a novidade ao meu pai. Talvez ele deixasse eu ficar. Bato no portão e depois de dois minutos ele se abre. Encaro meu pai que fica com o rosto preocupado quando me vê.
- Algo errado? Não era para você estar na escola? - ele pergunta enquanto entramos.
- Aconteceu algo. Fale baixo.  Melhor nao dizer nada para a mae agora.
Quando entramos ouvimos barulho na cozinha e sabemos que ela esta la. Meu pai me segue ate meu quarto e se senta na beirada da minha cama com um rosto apreensivo. Fecho a porta e sento ao lado dele.
- Fale. - ele comanda.
- Bem, eu passei no E.Q.I.P.
A expressao dele se suaviza.
- Por que nao queria que sua mae ouvisse isso?
- Porque minha profissao sera de policial... e terei que ir para o A amanha.
Ele me da um olhar duro, quase de raiva.
- Ah nao, Alice! Nao me venha com esse assunto outra vez!
- Mas, pai! E se eles descobrirem?
- So se voce deixar que percebam. Mesmo assim, voce nao tem escolha. Eles vao desconfiar se voce recusar agora.
Nao tinha pensado nisso.
- Alice, quantas vezes eu ja lhe disse que tem que confiar mais em voce? - ele segura minhas maos entre as suas. Foram tantas vezes... - Voce entende que ja passou da hora de deixar o medo de lado? Voce ja é quase uma mulher adulta.
- Mas, nao quero parar em um dos Centros...
- VOCE NAO VAI! Pare de dizer isso. Voce nao vai para la. Eu nao deixaria. - ele diz me olhando no fundo dos olhos. - Voce vai para o A, e dara tudo certo! Vamos contar para sua mae?
- Pode contar. Nao sinto vontade.
Ele se levanta impaciente e com raiva, e vai em direcao a porta. Antes de ela se fechar atras dele, ouco suas palavras.
- Voce vai para la queira ou nao.
Nao era exatamente uma ameaca. Sei que ele nunca me faria mal. Nao fisicamente. Nao conseguia acreditar que ele nao achasse estranho a decisao da presidente de nos levar para la amanha. Nao creio que ele nao se preocupe que eu seja pega em flagrante durante um surto. Porque eu nao paro de pensar nisso. La estarei ainda mais sozinha, isolada. Cada passo que darei sera tentando conter o inevitavel. Esperando que o gatilho nao seja apertado ao olhar para o rosto de alguem. Vai ser terrivel.
Posso ouvir meu pai murmurando com a minha mae no outro comodo. So ouco a voz dele. Ela nao se importa. Talvez esteja feliz porque nao me tera mais para se "preocupar". Nao vai mais precisar me engolir. Eduardo sempre me disse que ela gostava de mim, mas era retraida por causa da idade. Mas, eu via que nao era assim. Podia sentir seu desprezo me fuzilando pelo olhar.
Decido pular o almoço já que não estou com fome depois de ter comido algumas besteiras com Alexia. Tranco a porta do quarto  para ficar em paz, e pego a caixa de itens auxiliares de dentro da mochila. Se terei que ir para la, tenho que estar precavida. Retiro apenas o celular, o livro da NL e o Manual de Conduta da Universidade. Me sento na cadeira em frente a escrivaninha enquanto leio algumas páginas do Manual.

Uso obrigatório para estudantes de qualquer das Universidades do Estado A. O seu cartão magnético é intransfirível e de uso pessoal, e se encontra anexado no final deste manual. Qualquer descumprimento destas normas implicará em punição severa decidida pela reitoria com base na NL juntamente com os dados deste Manual.

I - Conhecendo a Universidade
a) Mapa;
b) Alojamento;
c) Normas de Convivência;
d) Fardamento;
e) Grade Curricular;
f) Estágio Observado Obrigatório.

A) Mapa

B) Alojamento
A Universidade fica no meio de dois condomínios contruídos pelo Governo. São 4 prédios de 6 andares cada. Os andares são divididos em 6 quartos espaçosos com os números de cada usuário fixados na porta de entrada. No quarto você encontrará uma cama de casal, dois criados mudos, um guarda roupa embutido, uma mesa ampla de estudos e o banheiro.

C) Normas de Convivência
1. Não é permitido conversas por qualquer meio de comunicação entre estudantes dentro das salas de aulas e/ou corredores da Universidade no horário de aulas.

2. Ao final das aulas nenhum estudante poderá permanecer dentro da Universidade. Salvo com ordem escrita de pessoa superior.

3. Não é permitido namoro ou qualquer forma de expressão de carinho mais intimo entre os estudantes, independente do sexo dos mesmos.

4. Não é permitida a venda ou compra de qualquer coisa e/ou serviço entre estudantes ou funcionários.

5. É proibido qualquer tipo de agressão física e/ou moral.

CC) Normas de Convivência (alojamentos)

1. Não é permitido qualquer forma de expressão de carinho intimo entre os estudantes (exceto beijo) dentro de seus dormitórios ou dos quartos de outros estudantes, independente do sexo dos mesmos.

2. É proibido qualquer tipo de agressão física e/ou moral.

3. O TR é válido dentro do alojamento. Salvo com ordem expressa de pessoa superior.

D) Fardamento
Na primeira semana de aula, os estudantes utilizarão a blusa preta de farda padrão da Universidade. Após esta semana, utilizarão o fardamento de acordo com a sua profissão. Sua secretária padrão lhe ajudará com qualquer dúvida acerca do assunto.

E) Grade Curricular
Ela estará fixada atrás da porta do seu dormitório, assim como você também terá uma cópia em e-book no seu tablet para consulta a qualquer momento.

F) Estágio Observado Obrigatório
Após a primeira semana de aulas, você iniciará o E.O.O. como um auxiliar padrão de um profissional da sua área. O ajudará em qualquer serviço ligado a sua profissão e receberá um salário por isso que pode ser utilizado para seus gastos pessoais.

Seja bem-vindo(a) ao corpo de estudantes-auxiliares padrão do Estado A!

                 Roger Smith                      Coordenador da Reitoria

                 Branca Holtz
        Presidente de Belnegro

Não parece nada demais para mim, e nem um pouco diferente da conduta que tínhamos na escola. O estranho será ter que lidar com meu terror interno, e minha falta de vontade de me socializar. Mas terei que me adaptar. Todos que vão para lá se acostumam, e não é possivel que apenas eu leve um segredo para la. No final do Manual está anexado um cartão azul, como uma especie de crachá com uma foto recente tirada com a farda da escola, informações pessoais, minha futura profissão e dados de alojamento.
Olho para o restante do conteúdo da caixa, mas não tenho vontade de testar nada ali. Pego o celular apenas para armazenar o número do telefone da minha casa, o da Secretaria Municipal e o da escola. Os únicos com quem poderei manter contato quando estiver fora. Suspiro. Sinto meu corpo cansado e fadigado. Me deito na cama ainda com a farda e a cabeça a mil. Amanhã tudo vai mudar. Sinto que darei o meu primeiro passo rumo ao incerto. Um passo no corredor da morte.As palavras da inspetora voltam aos meus ouvidos antes de o sono me puxar para si: "Todos estão cientes de que esse é um caminho sem volta?"

                      
                                +++

Acordo com batidas suaves na porta, e percebo que já é quase noite. Me levanto, e me deparo com um rosto duro me encarando. Amarílis, minha suposta mae. Nao entendo o que ela esta fazendo aqui. Nao da para acreditar nisso. Nem me lembro da ultima vez em que ela me dirigiu a palavra. Ainda assim sentamos lado a lado na cama encarando o chão. Não a palavras para expressar minha confusao. Sei que vou deixá-los para sempre, e é isso. Nao pensei que ela se importaria. Ela remexe suas mãos procurando as palavras, seu rosto ate bonito e conservado apesar da idade se contorce como se nao soubesse o que estava fazendo aqui. Seus olhos parecem já ter visto coisas sobre as quais ela nunca contou, mas a outras como agora que posso ver em sua superfície. Está estampado em seu rosto que ela esta com... pena.
- Conversei com seu pai sobre tudo isso. E, mesmo que nao pareca, eu me importo com voce. Acho uma loucura voce ir ate la. Estara se arriscando mais do que ficando. Mas, voce conhece seu pai...
- Sei. Ele nao deixaria que eu ficasse.
- Ele tem seus motivos, Alice. Talvez, ele tenha razao.
Penso em perguntar em que, mas ela muda rapidamente de assunto.
- Preciso lhe dizer algo. - ela diz com o semblante triste. Os olhos escuros brilhando. - Nunca me aproximei de voce por... medo. Medo de te perder. Eu vi o estado em que voce fica quando surta. Eu pensei que logo viriam busca-la. Mas, ninguem te denunciou e voce permaneceu.
- Voce esta me dizendo que nao se aproximou de mim porque nao queria sofrer se eu partisse?
- Sim. Para nos proteger. Sei que voce sofreria mais do que eu. Agora voce vai, e para sempre... E mesmo com o muro que criei entre nós, ainda vou sofrer com isso.
Wow. Eu nao sei o que pensar. Meu pai nao deixou de se aproximar de mim por isso. Parece egoista. Mas, nao posso julga-la. Talvez, se eu estivesse em seu lugar quisesse me proteger da dor tambem. Nao a como saber. Permaneco muda.
- O motivo nao é apenas esse. Sao diversas coisas. So quero que saiba que estarei torcendo por voce.
- Obrigada, Amarílis.
Nao poderia lhe chamar de mae nem que quisesse depois de ouvir essa confissao tao aberta. Posso tentar entender, mas nao posso deixar que ela ache que isso foi o certo. Ela se levanta e me olha como se quisesse me abracar, mas desvio o olhar para o outro lado. Ouco a porta bater, e os passos dela retinindo contra o chao enquanto corre.
Me sinto angustiada quando lembro de tudo pelo que ja passei, e pelo que ainda passo. Uma vida inteira de privacoes e dor. As vezes, penso que ninguem em meu lugar escaparia sem sequelas. Nessas horas, consigo me conformar com o que sou. Em outros momentos, eu sinto como se fosse meu proprio carrasco. Estou afastando a todos. Ninguem permanece por muito tempo ao meu lado. É como se eu fosse o azar em pessoa. É um pensamento duro e doloroso, mas como fugir dele? Para mim é impossivel.
Com dificuldade, me levanto e esvazio minha mochila e depois pego algumas peças de roupa do guarda roupa. Decido levar três conjuntos de roupa, um pijama, coisas de higiene pessoal, os itens auxiliares, e é isso. Já não cabe mais nada na mochila padrão L. Fecho o zíper, e encaro a mochila sem acreditar ainda que estou sendo jogada novamente pelo destino sem poder impedir. Suspiro. Coloco-a sobre a escrivaninha quando vejo meus livros empilhados e muito bem ordenados. Sao 12 ao todo. Nao poderei leva-los porque seriam detectados na Universidade. Pego o primeiro livro da serie favorita do meu pai e me arrasto de volta para cama. Me ajeito em uma posicao confortavel e abro o livro. As folhas ja estao gastas, amareladas e há palavras que quase nao compreendo, mas o conheco de cor. Quando chego ao 3 capitulo paro a leitura abruptamente. Me identifico muito com a garota da historia. O anexo da Universidade representava o meu papel de escolha. Eu havia sido escolhida para algo que eu sabia como funcionava, mas que so quando estivesse la saberia realmente como era. Eu estava sendo levada sem a minha total permissao. Apenas para agradar meu pai mesmo sem entender seus motivos para me querer tao distante. E, o pior, para sempre.
De repente, uma batida na porta seguida de uma voz me assusta. Mas é apenas Amarílis me chamando para jantar.
Comemos em silêncio o que é bastante constrangedor já que sempre conversamos a mesa. Sobre o trabalho dos dois, meu dia na escola, alguma fofoca das redondezas, a criação de alguma nova lei para nos impedir de mais alguma coisa. O unico som na sala vem da tv que esta ligada em um dos três canais abertos para os estados mais pobres. Ela está sintonizada  na BelTV, o canal que passa a maior parte do dia falando sobre a movimentação política, sobre a tranquilidade nas barreiras, e na muralha dos novos Estados de Fronteiras. Todo início de ano, eles tambem cobrem a chegada dos Alunos Padrão em suas Universidades para dar um ar mais sofisticado a coisa toda e fazer com que a população esteja sempre ansiosa para que um de seus filhos, no próximo ano, seja um dos APs.
Apesar disso, não gosto da maneira como eles tentam enganar as pessoas para que achem que o Governo pensa em nós e que quer nos ajudar. Basta pensar no sacrifício (e sorte) para entrar na escola e depois nas horas gastas durante três anos para poder ter uma chance de passar nos testes de aptidão profissional. E apenas uma parcela menor que 1% dos cidadãos do estado tem realmente chances de entrar nessa competição dado o numero de escolas existentes. Fora todas as outras competicoes. Até mesmo para ter direito a uma vaga ou atendimento no hospital você tem que se cadastrar para participar de um sorteio diário no site da Secretaria. Muitas pessoas tem morrido por falta de atendimento médico. Outras ainda se salvam por terem conhecimentos da "medicina" natural.
Meus pensamentos são cortados assim que percebo que a tv emudeceu. Viro o rosto por sobre o ombro, e vejo a tela azul com o símbolo dourado de Belnegro cintilando. Isso só pode significar uma coisa. A presidente Branca vai fazer um pronunciamento.

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