sábado, 19 de julho de 2014

[Belnegro] Capítulo 3

Naquele momento, um panico maior do que qualquer outro a qual eu havia sido submetida me paralisou. Eu ouvia os murmúrios dos outros alunos indignados por que não conseguiram uma das 100 vagas disponibilizadas para a nossa escola, mas não conseguia tirar os olhos do anexo. Nao pode ser verdade. Tudo menos isso! Nunca esperei que eles me colocassem como uma policial. Pensei em algo mais relacionado a trabalhos internos onde eu ficaria isolada dos demais policiais. Se eles descobrirem sobre meus problemas, eu estarei condenada. Esse anexo representa minha sentenca de morte. Mas, eu ainda posso voltar atras. Nao preciso aceitar. O problema é que eu ja podia ouvir as palavras que meu pai diria: "Voce nao esta pensando em desisitir esta? Quer parecer fraca para o resto da vida?! Vai deixar que eles digam quem voce é ou deve ser?! Voce so estaria provando a eles que pessoas com certos problemas nao podem ter uma vida normal em sociedade."
Ele tinha razao. Nao podia deixar de fazer uma coisa para qual estava apta porque os outros haviam rotulado pessoas como eu como incapacitadas. Se eu ainda estava viva apesar de tudo, talvez eu pudesse dar conta disso tambem. Sinto que preciso lutar nem que seja uma vez na vida. Nem que seja pela ultima vez. Nao posso me esconder para sempre e talvez morrer lutando pelo que se quer seja a melhor forma de deixar o mundo. Eu nao tenho quase nada a perder no fim das contas.
Ainda assim, me sinto nervosa. Quase posso ver meu rosto branco como um papel. Alexia segura meu braco e olha para mim assustada. Minha visao comeca a embacar e os fecho. Nao posso alucinar logo agora.
- O que voce tem, Alice? - ela pergunta. - Esta branca como um morto.
- Acho que nao estava preparada para isso. - dou-lhe um pequeno sorriso.
- É melhor voce se aguentar mais um pouco de pe. Ainda nao terminou. - ela diz rindo enquanto me segura pela cintura me dando algum apoio.
Nossos pensamentos são cortados quando a voz de Roger e sua imagem aparecem na tela.
- Primeiramente, quero desejar parabéns e felicidades aos nossos novos APs! Uma salva de palmas para eles!
Todos batem palmas em unissono. Menos eu.
- Os outros alunos que não foram escolhidos ainda tem a chance de encontrar um emprego na Secretaria de sua cidade. Basta levar os resultados do pré-teste e do teste final junto com seus documentos.
- Agora os alunos que não foram escolhidos podem se dirigir para suas respectivas salas de aulas, mas os Alunos Padrão, por favor, permaneçam onde estão.
Meu olhar segue os muitos alunos que se dirigem para as portas de saída. Nos meus 3 anos aqui nunca vi a Cerimônia se alongar por tanto tempo. E também desconheço uma reunião privada no pátio com os APs. Alexia me cutuca antes de murmurar no meu ouvido.
- O que você acha que é?
- Talvez eles façam a entrega dos livros agora. Não tenho outra ideia.
- Isso parece muito estranho. - ela diz seria por um segundo. - Mas o importante é que fomos selecionadas e que estaremos quase juntas na Universidade. Sua profissão parece muito importante. Quem sabe você não se torne minha chefe?
Rimos com a ideia, mas paramos no instante em que a estática dos altos falantes se propaga pelo lugar. Olho ao redor e vejo que todos os outros sairam. Só restaram os APs.
- Bem, pessoal! - diz Roger. - Sei que não é comum a cerimônia se alongar assim, mas hoje é um dia de comemoração para toda a população de Belnegro! Temos uma ótima notícia para dar a vocês, mas antes vocês precisam entender que ela é altamente sigilosa.
- Nenhuma informação que for passada aqui deve ser repassada para outras pessoas a não ser seus pais. Qualquer infração e vocês perderão sua vaga tanto da Universidade quanto da escola.
- Sem mais delongas, informo a vocês que para comemorar os 40 anos da criação da NL, levaremos cada um de vocês amanhã mesmo para suas respectivas Universidades do Estado A. Não irão precisar concluir o 3° ano como todos os outros alunos antes de vocês. Já sairão daqui com seus diplomas.
Conversas explodem imediatamente no pátio e prosseguem mesmo com a tentativa de intervenção de Roger para restaurar a ordem. Eu fiquei muda com meus próprios pensamentos assim como Alexia. Todos sabíamos que os APs continuavam estudando até o final do 3° ano e só então erão levados para o Estado A. Nunca ouvi falar de uma comemoração pela NL fora da data estipulada no calendário.
Parece de alguma maneira ainda mais assustador e vejo que hoje nao é meu dia de sorte. Mas, talvez seja melhor assim. Se tivesse tempo para pensar seria mais dificil ir. Meu pai diria que meu destino estava me chamando. Sim. Para a morte.
Depois de alguns minutos, e com a chegada de mais soldados, o silêncio voltou a pairar sobre nós. A não ser pela voz de Roger.
- Eu sei que pode parecer estranho, mas a Presidente Branca decidiu comemorar essa data junto com o País. Com a saída de vocês novas vagas serão abertas nos próximos dias para aqueles que não concluiram o EM, mas desejam fazê-lo. O que vai ser uma grande oportunidade para toda Belnegro!
- Isso não vai comprometer seus desempenhos na Universidade. Estamos seguros de suas capacidades e temos certeza que tudo dará certo. Agora vocês irão receber seus livros da NL,um manual de conduta da Universidade e seus itens auxiliares, assistirão uma palestra na sala de video e poderão ir para casa se preparar.
- Desejo boa sorte a todos vocês novamente e sejam sábios. Estamos com vocês!
Eu nem percebi que os soldados haviam disposto algumas mesas perto de umas das portas de saída. Elas estavam cheias de livros da NL, equipamentos eletrônicos em caixas e cartilhas. Vários alunos começaram a formar uma fila e seguimos para lá. Alexia está muito ansiosa a minha frente roendo as unhas, e prefiro deixa-la quieta. Não consigo parar de pensar que existe algo a mais por trás de toda essa ideia da Presidente Branca. Ela nunca se preocupou com seu povo. A não ser para criar mais leis para nos deixar ainda mais encurralados e debaixo de seus pés.
Depois de alguns longos minutos, Alexia pega uma caixa grande com os itens auxiliares, o livro da NL e uma papelada da Universidade. Ela me olha por sobre o ombro e sorri enquanto sai para o corredor se juntando aos outros alunos. Quando chega minha vez, estou mais nervosa do que esperava. O soldado Wellington é quem está fazendo a entrega do material na minha mesa. Ele me da um sorriso alegre como se dissesse que está tudo bem e só então tenho a oportunidade de estudá-lo. Ele está vestido com a roupa padrão dos soldados de Belnegro, uma roupa cinza com manchas mais escuras aqui e ali. É alto e parece forte por baixo de tudo aquilo. Sua pele morena brilha quando a luz do sol o toca o que o deixa mais bonito. Nem sei como estava conseguindo pensar nisso...
- Soldado Wellington. - cumprimento.
- Senhorita... - ele passa as fichas em busca de uma que tenha minha foto. - Alice Alencar?
Concordo com a cabeça e ele me entrega os materiais seguidos de uma papelada.
- Assine aqui. - ele comanda. - E aqui também.
Três páginas depois, ele me entrega uma folha destinada aos meus pais.
- Espere lá fora que levarei seu grupo para uma das salas de vídeo.
Assinto com a cabeça e saio para o corredor me juntando a Alexia. Solto o ar que estava prendendo inconscientemente e em silêncio aguardamos os outros alunos terminarem lá dentro. Me sinto prestes a ter um surto no meio de tante gente, mas consigo me controlar. Alexia remexe sua caixa mesmo que um lacre diga que é expressamente proibido a abertura da mesma sem uma ordem superior. Sorrio enquanto ela olha furtivamente para os lados com medo de algum dos soldados verem o que ela está aprontando. Dentro da caixa tem um smartphone enorme de modelo padrão A. Todos os equipamentos eletrônicos tem um padrão de acordo com o estado até chegar aqueles onde as pessoas nem mesmo podem adquirir os modelos mais baratos. Ao lado do celular está uma embalagem preta de plástico que guarda um óculos sofisticado que dizem que pode acessar qualquer site da internet pela tecnologia Wi-Fi. O tablet que costumamos usar nas aulas está mais embaixo, e logo abaixo dele uma caixa com o equipamento para instalar a rede Wi-Fi em nossas casas. Alexia abre a boca toda as vezes que olha para um apetrecho novo. Ainda lembro do grito que ela deu quando viu o tablet na nossa primeira aula.
Eu nao conseguia prestar atencao nessas coisas enquanto tentava controlar minha respiracao e meu cerebro para trabalharem calmamente durante as aulas. Nao conseguia apreciar mais nada. Fora que quando os via tinha uma certa ponta de raiva. Eles me lembravam do que me foi privado a vida inteira. Me traziam o rosto da presidente ao meu subconsciente.
No nosso estado a maioria das pessoas nunca viu esse tipo de equipamento. As lojas do governo vendem apenas bens indispensavéis as tarefas diárias e isso de acordo com a lista de bens que recebemos da Secretaria. Tudo é muito limitado em nossa vida e, por isso, entendo a esteria de Alexia. Ela fecha a caixa cuidadosamente e por sorte consegue colocar o lacre adesivo quase do mesmo modo que estava e sorri triunfante para mim. Percebemos que o corredor está bastante lotado e então quatro soldados incluindo o soldado Wellington saem do pátio. O soldado Verner da um passo a frente e nos encara serio enquanto fala.
- Vamos dividir vocês em quatro grupos de 25. O Grupo 1 seguirá com o soldado Sergio, o Grupo 2, o soldado Wellington, o Grupo 3, o soldado Almir. 
Alexia solta uma risada contida por causa do modo como o soldado fala como se estivesse nos comandando para a guerra.
- E o grupo 4, comigo. Entendido?
Todos assentimos e os soldados começam a nos dividir. Eu, Alexia e mais outros 23 alunos, seguimos o soldado Wellington pelo corredor a esquerda e subimos a escada em direção ao 3° andar. A maioria dos adolescentes ao meu lado parecem abatidos e confusos, mas há alguns com sorrisos no rosto e que até arriscam conversar um pouco. Eu, pelo contrário, me sinto desconfortável. Um alerta vermelho piscando na minha mente. Chegamos no 2° andar e seguimos pela direita subindo em mais outro lance de escadas. O soldado Wellington, a quatro pessoas a minha frente, se volta para trás de vez enquando e nossos olhares se cruzam. Fico desconcertada, mas talvez ele só queira ter certeza que estamos todos aqui.
Alexia me empurra com o ombro  e me olha pelo canto dos olhos.
- Você está bem? Ainda parece pálida.
- Só estou achando isso tudo um pouco estranho. Estou bem.
Decido não contar a ela o que estou pensando. Ela nao entenderia. Ela nao faz ideia do que acontece com pessoas como eu. Mas, eu sabia.
Assim que pisamos no 3° andar, a inspetora Jéssica vem ao nosso encontro vinda do corredor a direita.
- Pode ir, soldado Wellington. Assumo daqui.
Ele faz uma reverência e volta pela escadaria, mas não antes de esbarrar em mim no caminho e me atirar um sorriso. Desvio meu olhar para a inspetora tentando processar suas palavras.
- Me sigam até a sala de vídeo. Lá conversaremos melhor.
Seguimos pelo corredor a direita e no final dele a uma porta de metal. Ela passa o cartão no sistema de tranca e a porta abre com um clique. Entramos em silêncio e me sento com Alexia na parte de trás da sala. Assim que todos nos acomodamos, ela assume uma postura rigida e se centraliza na frente da tela plana de video conferência.
- Bem, como o Roger disse a vocês, amanhã todos serão levados para suas respectivas Universidades. Porém, estamos abertos a conversa com aqueles que por algum motivo não queiram ir.
Quase levanto a mao e grito: EU! Mas, vejo a decepcao no rosto do meu pai em minha mente, e me controlo.
- Seus pais precisam assinar a papelada de admissão do governo aceitando sua estadia permanente no Estado A. Todos estamos cientes de que é um caminho sem volta?
Um arrepio percorre meu corpo. Quase podia sentir os dedos gelidos da morte me tocarem. Assentimos.
- Vocês estão levando o Manual de Conduta com seus deveres e permissões, um mapa da Universidade, local onde ficarão alojados e a grade curricular. Sugiro que o estudem assim que chegarem em casa.
- Poderão levar alguns pertences, roupas e objetos pessoais. O que couber na mochila padrão do nosso estado. Mas não se preocupem, pois vocês terão todas as suas necessidades supridas. Cada aluno terá uma secretaria padrão para ajudá-los nos primeiros dias.
- Vocês ficarão alojados em um condomínio próximo a Universidade. Os prédios são divididos por setores. Existem 10 Universidades no Estado A e cada uma delas supre um setor profissional. Profissões com a base de estudos parecidas ficam na mesma Universidade.
Ela caminha a nossa frente de um lado para o outro com a cabeça baixa tentando lembrar se esqueceu de alguma coisa até que ela para no mesmo lugar em que estava.
- Alguma dúvida? - ela indaga.
Tenho vontade de levantar a mão e fazer algumas perguntas. Mas, as perguntas do tipo: "Porque a Presidente Branca teve essa ideia logo agora? 40 anos não parece um período tão longo para ser comemorado." ou "Isso aqui é algum tipo de brincadeira? Um reality show?" ou "Sera que se tiver um surto me levarao presa para um dos Centros de Contencao?" não me parecem adequadas.
Um garoto de uns 18 anos levanta a mão do outro lado da sala e todos voltamos nossos olhares para ele. Fico com pena quando ele parece ficar nervoso sendo alvo de tantos olhares, mas acaba falando.
- Poderemos ver nossos pais?
Eu queria ter pensado nessa pergunta. Com tanta coisa em mente mal lembrei da minha familia. Todos nos viramos para a inspetora aguardando sua resposta.
- Presumo que em algum momento vocês tenham tido acesso a NL. Uma das leis é bem clara sobre a saída de um estado para outro. É proibido na maioria dos casos, e nesse, infelizmente, também é. Mas isso não quer dizer que não poderão se comunicar com eles a qualquer momento. Seus pais só precisarão ter acesso a algum meio de comunicação via teleconferência. Entendido?
O garoto assenti com a cabeça e ninguém mais faz menção de perguntar alguma coisa. Enquanto a inspetora tenta retirar o lacre da caixa de itens auxiliares penso nas suas últimas palavras. Eu consigo entender até certo ponto algumas das leis contidas na NL, mas a que mais me incomoda é esta que ela citou.  Ficarmos presos aos nossos estado como se fossemos todos bandidos. Eles tem medo que de forma ilegal as pessoas voltem a circular drogas e armas pelo país. Como se eles pudessem conter isso apenas dentro de cada estado como se faz a uma pessoa doente em quarentena. O problema é que as pessoas não podem ser julgadas pela conduta de outras. E mesmo que eles tentem, a ilegalidade nunca terá fim. Não dessa maneira.
A inspetora retira todos os itens e os coloca lado a lado na mesa e pigarreia para chamar a nossa atenção.
- Abram suas caixas, mas não arranquem os lacres.
Todos abrimos.
- Acredito que vocês conheçam um aparelho celular. Com ele vocês poderão se comunicar com sua familia dentro dos horários e dias estabelecidos que vocês podem encontrar no manual de conduta. Um aviso. É proibido a comunicação de um aluno com outro dentro da Universidade. Para isso nossos criadores padrão de softwares instalaram um aplicativo que bloqueia comunicações desse tipo.
Ela pega o tablet, mas coloca de volta na caixa ciente de que já aprendemos a utilizá-lo.
- Este óculos foi fabricado pelos estudiosos de computação do Estado A e tem acesso a qualquer página da internet. Não prejudica a visão, se estiverem se perguntando. Nos seus celulares encontrarão um manual em video com o passo-a-passo de como utiliz..
Minha mente acaba se desconectando do que ela diz. Eu não consigo parar de imaginar que talvez ficar com meus pais e entrar para pré-seleção seria uma maneira mais confortável de viver a vida. Se eu for para o Estado A terei que abrir mão da minha família, e talvez da minha vida ou do meu "bem estar" mental. Mesmo quando eu me formar e for trabalhar na capital não poderei vê-los fora de uma tela ou projeção. Nunca mais poderei abraçá-los, senti-los ao meu lado. Não sei se seria vida no fim das contas. Mas, eu sei que meu pai nao me apoiaria se eu quisesse ficar aqui. O problema é que parte de mim nao quer ir. Parte de mim sabe que é suicidio. Mas, nunca mais poderia encarar o rosto do meu pai e entao teria que fugir. Sei que isso tambem seria o fim, entao escolho o que atinge menos pessoas. Irei para o Estado A.

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