sexta-feira, 18 de julho de 2014

[Belnegro] Capítulo 2

                     Parte I
                    Nova Lei
  

"A revolta nao tem rosto, nao tem forma. Ela tem uma base sólida dentro dos ideais daqueles que precisam se libertar."
        Autor desconhecido, 2068.

Esta frio. Escuro. Sinto um cheiro putefrato ao meu redor. Deve ser porque estou no meio do lixo. Tento me cobrir melhor com o lençol ralo, mas ele é pequeno demais. Abro meus olhos inchados, e tenho vontade de fecha-los novamente. A visao ao meu redor sempre me assusta. De olhos fechados, posso imaginar que esse chao duro é uma cama, posso trocar esse beco por uma casa, posso criar uma familia imaginaria. Mas, com eles abertos a realidade me toma. Ela é avassaladora. Me viro contra a parede e meus pes tocam a caçamba de lixo. O silencio reverbera pelo lugar. Ainda é cedo.
Procuro algum som com o qual possa me agarrar e fugir dos pensamentos ruins. Ouço passos. Estao ficando proximos. Me ergo rapidamente com o coracao acelerando como um carro prestes a colidir com um muro. Nao é possivel. A terceira vez em uma semana que eles me encontram. Sinto minhas costas apertadas contra o metal frio da caçamba enquanto murmuro de olhos fechados. Impossivel. Impossivel! Eles param a minha frente e alguem cutuca minha cabeca. Abro os olhos e me deparo com o mesmo de sempre. Policial Jackson, e seu mascote da PFAC.
- Voce por aqui novamente, garota? - ele diz com uma voz maliciosa.
Fico em silencio. Falar so pioraria tudo. Oh Deus, como os odeio!
- Eu lhe fiz uma pergunta!
O cacetete desce sobre meu rosto duas vezes. A dor lascinante se espalha por minha cabeca, um fio de sangue cai sobre meu lencol.
- Eu nunca estive aqui. - digo com uma voz estridente.
- E nao deveria estar em lugar algum dessa cidade. - ele diz rindo. - Voce suja a imagem dela. Posso sentir seu cheiro a quilometros! Saia logo daí!
Ele puxa meu braco com violencia enquanto o outro policial apenas olha. Ele parece ter pena, mas nao faz nada para impedir. Jackson me joga contra a parede do outro lado do beco. Nao tenho mais forcas para levantar. Meu corpo esta fraco de tanto apanhar deles e da fome.
- Voce é como um rato nojento! Na verdade, nao. Eles conseguem se defender. Voce é fraca!
Minhas palpebras se fecham automaticamente antes do chute acertar meu estomago. Abafo um grito entre dentes e me contorço no lugar. Ouco os pedregulhos sendo esmagados debaixo dos seus pes, e antes que me chute mais uma vez, abro os olhos. Mas dessa vez para realidade.
Me ergo da cama na escuridao e por um segundo penso que ainda estou naquele beco. Sinto os lencois debaixo de mim macios como sempre. As lagrimas rolam pelas orbitas lavando meu rosto. Nessas horas, ainda me sinto aquela menina lutando pela sobrevivencia. Aquela garota que tinha medo de tudo e de todos. Eu ainda tenho um pouco dela dentro de mim. Ela me encontra todas as noites.
Repasso em minha mente a minha vida de hoje tentando afastar o pesadelo. Alice Alencar. Tenho pais, os melhores que poderia querer. Tenho uma casa, comida, roupa. Nao preciso me preocupar mais com a fome ou a dor. Nao sou fraca. Nao mais. Eu estava mentindo. Ainda sou fraca, e por isso os sonhos nunca me deixaram em paz. Ainda lembro quando Eduardo, meu pai, me encontrou revirando o lixo em uma praça. Ele tocou meu braco e eu corri. O medo sempre falava mais alto. Mas, ele persistiu, e tambem sempre me encontrava. Me levava comida, contava historias sobre uma epoca em que havia escolhas e oportunidades.
Parecia um sonho, e sempre achava que ele estava mentindo porque queria se iludir. Mesmo parecendo uma pessoa boa, nunca deixei que ele me abraca-se quando tentava. Nao confiava nas pessoas. Alguns meses se passaram ate que tive coragem de dizer a ele o que os policias faziam comigo. Ele chorou como se sentisse a minha dor viva dentro dele, pegou minha mao e me levou para sua casa. Depois de ver aquelas lagrimas tao genuinas que nunca pensei que um homem poderia ter, decidi confiar nele. Somente nele, e em ninguem mais.
Um odio ferve em minhas veias sempre que lembro dessas coisas. Eu sei de quem é a culpa do que eu tinha vivido. É da Presidente Branca. Das suas leis severas, seu regime autoritario que nao deu escolhas aos meus antigos pais. Eles me criaram nas ruas ate os meus 7 anos, mas eles nao suportaram aquela vida e morreram. Nao existe nenhuma palavra no mundo que descreva a sensacao de ver seus pais morrerem ao seu lado e ter que deixar seus corpos para tras. Nao existem hospitais para pessoas como as que eramos. Nem justica, seguranca ou empregos. Eu tive sorte de encontrar Eduardo ou teria morrido como meus pais. Agonizando por doencas incuraveis, pela fome e a sede.  Aquela vida me marcou para sempre. Nao a como esquece-la.
Me deito novamente mesmo sem sono, e percebo que o dia esta quase amanhecendo. Mais tarde estarei indo a escola, coisa que odeio. As pessoas sao superficiais, os professores sao hologramas, tudo é muito tecnico e ditatorio. Nao existe liberdade. Mesmo que eu tenha serias dificuldades de me relacionar com as pessoas, sei que a escola deveria prezar pelos relacionamentos interpessoais. Mas, querem nos limitar em tudo. Logo poucos estudantes tem amizades la dentro.
Lembro, que pedi a Eduardo para nao ir a escola, que ele poderia me ensinar em casa. Mas, ele via em mim algo que nunca percebi ou que nunca dei a minima. Inteligencia. Ele diz que sou muito observadora e, por isso, aprendo rapido. Fiz o teste para entrar na escola, e passei. Quando comecei a me destacar tive medo. Muito medo. Eu sabia o que acontecia as pessoas que passavam no E.Q.I.P. Elas eram levadas de suas casas e viviam permanentemente no Estado A. Claro, que para ir a Universidade e trabalhar. Mas, a perspectiva de ter meus pais tirados de mim novamente trazia mais um trauma de volta a tona. Meu pai me explicou que eles nunca me tirariam verdadeiramente deles porque eu sempre os carregaria comigo. Ninguem passa por nossas vidas sem deixar uma parte de si. Essas palavras sao bonitas, e trazem um certo conforto, mas apenas momentaneo. Ainda assim, por ele, dei o meu melhor no teste final do E.Q.I.P. Queria que ele se orgulhasse de mim. Nao queria mais parecer fraca.
Olho de relance para minha escrivaninha e vejo meus livros preferidos empilhados. Um sorriso se abre em meu rosto. Atraves deles, posso escapar da realidade. Nem que seja por um momento. Eduardo me criou de uma maneira absurda para os padroes de Belnegro. Ele me incitava a quebrar as leis. Me deu varios livros proibidos de presente que haviam passado por varias geracoes em sua familia. Estao tao gastos que mal da para ver a cor das capas. Ele gostava de uma serie em especial, e sempre liamos ela juntos antes de dormir. Ele adorava a personagem principal porque ela doou sua vida em prol da sua nacao. Seus olhos brilhavam quando lia aquelas paginas. Depois de um tempo, percebi que ele gostaria que eu fosse como ela. Me comparava a ela em certos momentos, o que me fazia pensar que ele estava ficando louco. Mas, eu nao podia dizer a ele que nunca seria como ela. Me sinto fraca, nao sei bem o que quero e, as vezes, acho que nao mereco o que tenho. As vezes, penso que a qualquer momento posso voltar aquela vida, e nao suportaria. Contudo, nao podia dizer a ele que aquilo era apenas uma historia. La parecia mais simples mudar as coisas. Mas, coisas assim nao acontecem de verdade. Mas, eu permanecia calada. Tentava sempre parecer mais perspicaz, e com curiosidade nas coisas que ele me mostrava mesmo que soubesse que nao era o que ele esperava.
Porem, ele continuava me mostrando mais do seu mundo particular. Saíamos escondidos durante o TR. Ele havia calculado os horarios das rondas so de observar os carros da PFAC passarem em nossa rua. Eu me sentia entusiasmada e excitada com aquela aventura. Nesses momentos, me sentia realmente viva. Pareciamos camundongos percorrendo um labirinto. Na maiora das vezes, minha mae achava que estavamos nos arriscando demais, mas geralmente nao dizia nada. Ela é uma mulher fechada dentro de si.
A verdade, era que eu amava meu pai a cada dia mais. Ele odiava aquele regime tanto quanto eu, e fazia eu me sentir como se pudesse mudar tudo ao meu redor com as atitudes certas. A minha antiga vida foi ficando cada vez mais no passado.
E, hoje estou aqui, com meus 17 anos, prestes a receber o resultado do E.Q.I.P. e provavelmente, prestes a entrar para uma das Universidades do A para trabalhar em uma das profissoes padrao. O que é a realizacao de um sonho para a maioria das pessoas, para mim é um misto de duvida, angustia, e ansiedade. Eu quero experimentar tudo aquilo que me foi tirado. Quero ver como é uma vida de verdade. E depois de ouvir por muito tempo que eu deveria tentar, que nao tinha nascido para ficar aqui em um emprego mediocre, que eu poderia ir alem, acabei passando a acreditar nisso. Mas, so por uns momentos. O medo de coisas novas sempre me encontrava.
Eu tambem sabia que nao era so por isso que meu pai gostaria que eu fosse para o Estado A. Nao que ele tivesse me contado alguma coisa. Mas dado seu jeito estranho de lidar com a vida, tenho certeza que ele quer que eu faça algo la alem de apenas ter uma vida melhor. Entao, acabo tendo medo de desaponta-lo.
Em alguns dias, meu pai sumia de casa durante a noite. Quando eu era crianca, o esperava com um livro para que ele lesse para mim antes de dormir. Nesses dias, ele evaporava.  Quando ele chegava no outro dia e eu perguntava o que tinha acontecido, ele respondia que eu era nova demais para saber. Entao, ainda hoje o sou porque ele nunca me contou nada. Logo, perguntava a minha mae para onde ele teria ido durante o TR, mas ela so balancava a cabeca em negativa. Raramente, ela fala alguma coisa. Eu nao entendia o jeito dela, mas nao insistia e nem procurava entende-la. Acho que ela nao gosta de mim, mas nao posso esperar que ela me ame como uma mae faria porque ela nao o é. Porem, eu criei minhas proprias respostas. Desconfio que ele esteja tramando alguma coisa. As vezes, ele passa horas conversando com policiais da PFAC aos sussurros, e me manda ir para dentro. Talvez eu esteja com paranoias porque li tantos livros onde as pessoas escondem segredos que acho que todo mundo os tem.
Quando a nevoa das lembrancas se desfaz, abro os olhos e o quarto ja esta claro. Olho para o meu relogio de pulso automaticamente. 07:00 hrs. Ouço minha mae já acordada preparando o nosso café. Todos acordamos cedo para seguir para nossas funções. Meu pai trabalha no Banco Central do governo, e minha mãe na Farmácia Popular. Eles não conseguiram passar na prova final do E.Q.I.P. para os empregos destinados aos Alunos Padrão no EM e tiveram que vir trabalhar para o governo, mas tiveram sorte. A meios bem piores de ganhar a vida aqui no Estado L, e eu os conhecia muito bem. Por falar nisso, moramos na capital do menor e mais pobre estado de Belnegro. Onde poucas pessoas tem chances de crescer na vida, e não acabarem no submundo das vendas ilegais ou em coisas bem mais assustadoras.
Sigo para o banheiro e tomo um banho rápido. A água já é quente a essa hora da manhã. Desde o ano de 2045, o efeito estufa vem aumentando rapidamente, e frequentemente ouvimos falar de estados da América do Norte, Europa e Ásia sendo engolidos por inúmeras enchentes e tsunamis. Ao que parece, faltam poucos anos para as ondas chegarem até aqui também. Enquanto isso, temos que nos acostumar ao calor durante o dia e o frio aterrador durante a noite. Saio do banheiro praticamente correndo, e visto a farda da I Escola do Estado L que consiste em uma blusa de um tom cinza escuro com o emblema de Belnegro em uma das mangas e as iniciais do nome da escola sobre o peito esquerdo, e uma calça jeans que tenho a muito, muito tempo.
Arrumo minha agenda na mochila e penduro no pescoço o cartão de acesso obrigatório. Saio do quarto e me deparo com meu pai com uma expressao pensativa enquanto minha mae serve o cafe nas xicaras.
- Alice. - ele diz com um ar cansado. - Não vai dar um abraço no seu pai?
Por um segundo a imagem dele desfoca, e vejo Jackson em seu lugar sorrindo maliciosamente para mim me indicando seu colo. Arquejo na mesma hora, e dou um passo para tras. A imagem volta ao normal poucos segundos depois, e vejo meu pai se levantando com um ar triste. Ele tenta me abracar, mas nao deixo.
- Por favor, nao. - digo ainda com o susto me causando tremores.
- Outro surto? - ele diz preocupado.
Suspiro.
- Sim.
- Sentesse, e tente se acalmar. Nao pode deixar que os medos te controlem.
Me sento na cadeira ao lado da dele. Claro que para ele era facil falar. Ele nao tinha que conviver  com fastasmas como os meus. Mas, nao posso culpa-lo. Nao a ele que me ajudou. Me repreendo por tais pensamentos.
- Hoje vocês recebem o livro da NL? - ele pergunta.
- Sim. E o resultado final do E.Q.I.P também.
O livro da NL era entregue todos os anos para os alunos concluintes do 3° ano. Quem nao tinha acesso a escola era obrigado a compra-los a um preco salgado na Secretaria. Nossas vidas dependiam de seguir as leis a risca.
- Alice, sei que voce deu o seu melhor. Lhe eduquei para que nunca abaixasse a cabeca por nada. Se voce nao passar, estaremos do seu lado. Mas, se passar tera que ir. Entende?
Na verdade, eu nao entendia. Nesses momentos, ele parecia tao autoritario quanto a presidente. Ele havia sonhado por mim. Eu nao sabia se queria viver uma vida idealizada por outra pessoa, mas eu tinha que ser grata. E so fazendo isso, eu sinto que seria.
- Claro. - respondo.
- Fique bem. - ele diz se levantando para sair. - E tente controlar seu medo. Isso pode acabar te prejudicando la fora. Nao queremos que seja levada. Eu e sua mae entendemos o que passou, mas eles nao.
Ele diz com raiva na voz. Eu nao quero parar em um dos Centros de Contencao onde pessoas consideradas loucas ou inoperaveis sao exterminadas por baixo dos panos. Eu juro que tento controlar meus nervos, mas nao consigo. Sofri muito preconceito na escola primaria e no EM. As vezes, o holograma da professora se transformava em um policial pervertido, um colega tinha o rosto de Jackson, ate o zelador parecia querer me atacar. Aprendi a me controlar para nao surtar totalmente, mas tinha momentos que eu queria apenas fugir. Me trancava no banheiro da escola e chorava. Me sentia o pior lixo da humanidade. Mas, eu tinha que me erguer, enxugar as lagrimas e fingir que nada estava acontecendo. Tinha que estudar mais, conversar menos, tentar nao me aproximar de ninguem para que o gatilho em meu cerebro nao fosse acionado. Tive que me isolar do mundo.
Nao tinha com quem me abrir sobre isso. Meu pai, apesar de relativamente amoroso, queria que me esforcasse mais para esconder o medo. Ele nao sabia o que dizer para mim. Minha mae, nao era mae em nenhum sentido. Me evitava quase sempre. Eu so podia conversar comigo mesma. Cresci achando que o meu problema era algo que so pertencia a mim e a ninguem mais. Criei barreiras ao meu redor que nao sei se um dia conseguirei destruir.
Tomo o restante do cafe sozinha. Me levanto com medo de enfrentar o mundo. É uma pressao grande demais para apenas uma pessoa. O portao desliza e se abre, e saio. Caminho de cabeca baixa para evitar outro surto ate o ponto onde o furgao da PFAC pega os estudantes. Vejo outros 3 alunos, mas nenhum da minha turma. E pelas caras de cansaço eles não moram na cidade. Existem pessoas de outras cidades que perseveram até conseguirem uma vaga e se mudam para cá, mas a outros que não tem a mesma sorte e precisam fazer a viagem de ida e volta todos os dias. Existir apenas quatro escolas no estado inteiro dificulta a vida de muitas pessoas.
Alguns minutos depois o furgao negro para, e entramos. Um soldado o dirige hoje e me sinto aliviada. Se fosse um policial, seria mais facil ter outra das minhas visoes.
Sento ao lado de uma garota loira que estuda na turma ao lado da minha. Geralmente, os alunos não mantém conversas e amizades na escola. Não temos tempo para isso. Depois do pré-teste do E.Q.I.P, uma enxurrada de matérias é anexada a nossa grade curricular e precisamos passar em todas para garantir, quem sabe, a bolsa para o Intercâmbio na Universidade.
A nossa escola parece mais um presídio sofisticado. A Presidente Branca insiste em manter o máximo de segurança possível em todos os estabelecimentos do governo. O prédio da escola é um grande bloco cinza de três andares, um para cada ano. No centro, fica um grande pátio arborizado e com bancos que apenas os APs tem acesso. Os corredores do 1° andar que dão para o pátio são protegidos por uma parede de vidro e possuem portas de acesso guardadas por policiais armados. Todas as portas das salas e passagens possuem trancas automáticas, detectores de metal e drogas. Todas são guardadas por seguranças. É um forte de alto padrão e segurança máxima. Faz com que nos lembremos dos dias escuros de 40 anos atrás. Um lembrete diário aos que ainda tem um resquicío dos antigos protestantes dentro de si.
O furgao para em frente ao gramado que tenta suavizar o cinza das paredes do prédio escolar. Assim que descemos a Inspetora Chefe, Jéssica Almeida, uma mulher carrancuda de 40 anos com porte militar, nos intercepta com instruções para o dia de hoje. Tento nao olhar diretamente para ela.
- Bom dia, alunos! - ela diz séria e repondemos em uníssono. - Como vocês sabem hoje iremos fazer a Cerimônia de Entrega do Livro da Nova Lei para vocês, alunos concluintes. Hoje também conheceremos os nossos novos Alunos Padrão que darão um passo gigantesco para o futuro de Belnegro! Por favor, me acompanhem.
Formamos uma fila indiana atrás da inspetora e seguimos em direção ao prédio. Os dois soldados de sentinela  a saldam com um gesto militar e as portas de vidro se abrem. O silêncio impera dentro de toda a escola e se não estivesse acostumada a isso poderia até estranhar. Era de se esperar que os adolescentes estivessem conversando avidamente pelos corredores, mas não ouvimos nem o menor dos murmúrios. É um dos deveres dos estudantes contidos na cartilha que recebemos na matrícula. Conversas entre alunos devem ser quase imperceptiveis. Um cochicho. Tenho certeza que ninguém aqui gostaria de perder sua vaga.
Dobramos em um corredor a direita e outro a esquerda em direção a um dos quatro corredores que dão acesso ao pátio. Assim que chegamos ao corredor podemos ver através das paredes de vidro os vários alunos do 3° ano sentados e em pé aguardando pelo início da Cerimônia. Paramos em frente a uma das portas também de vidro e a inspetora passa o seu cartão na trava. A porta se abre, mas Jéssica impede a passagem enquanto fala.
- Bem, procurem um lugar e aguardem o início da cerimônia. Só falta mais uma turma de alunos chegar para darmos início. Entrem!
Ela passa por nós e entramos vagarosamente no lugar. O espaço é grande, mas mesmo assim os alunos enchem quase tudo. Caminho em meio a multidão tentando nao focar no rosto de ninguem por muito tempo enquanto procuro Alexia, minha unica amiga. Vejo do outro lado mais a minha frente, uma garota alta de cabelos lisos em tom castanho. Ela se vira, nossos olhares se encontram e sorrimos. Mesmo com a minha dificuldade em me relacionar, acabamos nos aproximando por meio de conversas escondidas em nossos tablets durante as aulas. Alexia é uma racker de primeira e descobriu a senha do Wi-Fi central na nossa primeira aula. Eu acabei descobrindo o que ela estava fazendo, e ela me passou a senha depois de eu ter prometido ficar de bico calado. Nunca tive um surto conversando com ela, entao pudemos ser amigas. Eu nao gostava de falar muito sobre minha condicao aos outros porque me sentia fraca e indefesa, entao raramente falava sobre mim ate mesmo com ela.
Empurrando vários alunos consigo me aproximar de Alexia. Nos abraçamos por um momento e começamos a cochichar uma no ouvido da outra como a maioria dos alunos no local.
- Como está se sentindo? - ela pergunta.
- Agora que cheguei aqui confesso que muito ansiosa.
- Eu tambem estou MUITO ansiosa. Prestes a arrancar os cabelos! - ela fala alto demais e sorri. - Você acha que uma de nós vai conseguir?
- Alexia, você é profissional na computação! Vai conseguir fácil uma vaga na área de Investigação de Crimes pela Internet ou Projetista de Sistemas ou... são várias possibilidades.
Ela da saltinhos em minha frente e um sorriso enorme preenche seu rosto enquanto ela analisa minha resposta.
- Você também, Alice, tem inúmeras possibilidades. Apesar que acho que você se daria melhor na área investigativa. Você tem faro!
Ela tem razão. Como no meu teste os resultados apontaram para essa área acabei tendo várias matérias com foco em estudos criminais. Me saí bem em todas até agora. Mas, antes que eu consiga respondê-la percebo os cochicos diminuindo e uma voz masculina saindo pelos alto falantes. Uma tv de tela plana embutida  na parede de vidro próxima a nós mostra o gabinete da diretora, mas não é ela quem está sentada atrás da sofisticada mesa negra. Roger Smith, o Assistente Educacional Pré-Lei, é um homem de uns 30 anos de pele negra e de porte sério. Ele é o responsável por entregar os panfletos dos Alunos Padrão na Cerimônia e todos os anos ele faz seu discurso sobre a história do surgimento de Belnegro. Mesmo que todos nós tenhamos estudado e escultado sobre isso ao longo de toda nossa vida. Não é empolgante e só serve para deixar os alunos ainda mais tensos.
Ele testa o audio por alguns minutos e se levanta da cadeira ficando em frente a mesa. A suas costas a insignia de Belnegro brilha em dourado. Ele olha para a câmera com um olhar quase simpático, mas dar para ver que é pura encenação. Provavelmente, ele gostaria de estar em qualquer lugar que não fosse aqui.
- Bom dia, alunos! Hoje daremos início a nossa 40° Cerimônia de Entrega do Livro da Nova Lei. É um dia especial para todos nós. Sim, para todos nós, inclusive eu! - ele sorri e se remexe no lugar. - Também comemoramos mais um ano que nosso País emergiu do caos e da escuridão para a luz. Todos sabemos que os Protestantes subjugaram a antiga Belnegro e assassinaram nossa amada Presidente Julia Martins. Porém, os ministros que a ajudavam e seus auxiliares juntamente com as Forças Armadas conseguiram combatê-los e restaurar o país. Depois disso, a ministra-chefe, Branca Brant, foi eleita nossa presidente aos 25 anos de idade. Uma nova política foi erguida e uma série de leis criadas para melhorar a nossa convivência em sociedade...
Não consegui mais distinguir nenhuma palavra que ele dizia. Eu não consigo acreditar totalmente no que eles nos contam. Poucos detalhes sobre o que motivava os Protestantes foram divulgados, o que aconteceu com as famílias que viviam nos Estados de Fronteiras é quase um mistério. E senti na pele a maneira como a Presidente Branca tem nos limitado e subjugado durante todos esses anos. Eu sei que antes disso tudo nós tinhamos mais escolhas. Eramos mais livres. Meu pai havia me contado sobre a democracia.
Alexia me cutuca afastando meus pensamentos e olho novamente para a tela.
- Agora vocês receberão seus panfletos informativos sobre a NL. Os panfletos que vierem com uma folha anexada dirão para qual setor do Estado A vocês serão treinados e para qual Universidade vão entrar. Boa sorte e lembrem-se: "A Prática da Lei molda os cidadãos a favor da paz!"
Nesse instante, vários soldados uniformizados entram no pátio com inúmeros panfletos em mãos.
Os estudantes ao nosso redor se calam, mas ainda se remexem nervosamente. Mesmo que uma leve brisa passasse por ali, eu me sentia em um vulcão prestes a eclodir. Eu estava com muito medo de ter um dos meus surtos de maior escala agora. Os soldados já estavam quase ao nosso alcance quando Alexia cochichou em meu ouvido:
- É a hora da verdade!
Fiz que sim com a cabeça. A hora de saber se nossos esforços deram frutos ou se teríamos que entrar na pré-seleção da Secretaria para tentar arrumar um emprego ao menos descente. Ainda assim, eu gostaria de ir para o Estado A mesmo carregando minhas psicoses. Nunca saí do meu estado por ser proibido na NL. Já fui para outras cidades visitar "parentes", mas são tão ou mais pobres que a minha. Eu queria ver como era morar cercado pelo luxo em uma cidade de verdade. E, principalmente, queria ajudar minha família. Não apenas meus pais, mas os outros que não tinham nenhuma oportunidade e que nunca estudaram. Se eu conseguisse ir para o A algum dos meus "primos" poderia vir morar com meus pais e tentar entrar na escola. Seria um grande passo mesmo que para apenas um deles. Tudo ao nosso redor era feito através de sorteios e até mesmo eu teria que entrar nesse sistema.
Um soldado finalmente nos alcança e entrega nossos panfletos. Tento nao olhar para ele, mas quando o faco percebo que minha visao esta focada. Procuro o seu nome em sua camisa para agradecê-lo, mas ele se remexe e acabo não vendo.
- Obrigada, soldado...
- Soldado Wellington. Apenas o meu trabalho, senhorita.
Ele se afasta e o perco de vista. Volto meus olhos para o panfleto em minhas mãos. Antes de conseguir desdobrá-lo, Alexia começa a entrar em extase gritando por alguns segundos.
- Você está louca? - pergunto baixinho. - Quer ser punida?
- Eu passei! Vou para o Estado A! Olhe! - ela grita em meu ouvido.
Olho para o anexo em suas mãos e vejo para que área ela foi escolhida.
"Criação de Softwares para Área Investigativa do setor B - Universidade Secundária do Estado A."
Percebo que ela está chorando e a abraço. Fico muito feliz porque sei o quanto ela tem estudado e se esforçado para isso. E em uma familia de quatro irmãos só ela conseguiu uma vaga para a escola. Esse anexo é uma das maiores vitórias pessoais que se pode ter. Assim que nos soltamos abro o meu panfleto. Meu coração retumba no peito e tenho medo que todos estejam escultando. Desdobro-o e percebo o anexo. Viro as páginas quase inconsciente do que estou fazendo e encontro as palavras que mudariam minha vida para sempre:
"Policial Chefe da Área Investigativa do setor C - Universidade Secundária do Estado A"
Eu estava apavorada.

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