sábado, 2 de agosto de 2014

[Belnegro] Capitulo 1

Me sinto sozinha mesmo que nao esteja. Meu nariz se contorce a cada 1 minuto em resposta ao cheiro de podre que o lixao exala logo atras da grade em que estou encostada. Ouco o guincho dos urubus em uma area distante e gritos de um homem solitario brigando com os animais por alimento. Ouço tambem o gemido da minha mae ao meu lado deitada no chao. Olho para ela, e nao sei se ela ja esta morrendo. Nem sei se estou mesmo viva. Ha um ano, meu pai se foi. Arrastamos seu corpo para cima de uma montanha de lixo e o cobrimos com um trapo de pano. Murmuramos adeus. Agora a doenca, a fome, e o pior, a falta de esperanca, esta levando minha mae aos poucos.
Nao tenho idade para procurar um emprego na Secretaria, e mesmo que tivesse, nessas condicoes em que estou  jamais me dariam algum trabalho. Meus pais tambem nao conseguiram nada. Entao, nos arrastamos para ca, como cachorros de rua famintos. É surpreendente como a fome faz qualquer coisa parecer um banquete. Mas, a verdade é que esta cada vez mais dificil encontrar "comida". As pessoas aproveitam tudo porque tudo é pouco demais. Nao sei por quanto tempo vamos resistir.
Pressinto, que ela esteja com algum tipo de lepra em estado avancado. Seu corpo esta ferido, cheio de bolhas supurosas. E o pior. Nao a agua que dê para tomar banho. Existe uma torneira no lixao, mas so tem agua por uma hora. Nao consigo arrasta-la para la. Nao tenho um balde para guardar agua. Me viro com uma caneca para limpar suas feridas. As vezes, sinto minha pele cocar e arder. Tenho medo de estar pegando a doenca tambem. Entao, o que seria de nos? Talvez, eu ja esteja enlouquecendo, mas tenho vontade de deixa-la aqui e ir embora. Nao aguento mais essa vida. Claro, que eu a amo ou eu nao estaria aqui. Mas, essas condicoes sao inumanas. Elas destroem quem voce é.
Agora, eu olho para o rosto dela cheio de cascas, retorcido em dor e nao a reconheco. Observo seu semblante quebrantado e nao me reconheco. Antes bastava que ouvisse seu gemido e ja estava chorando. Mas, agora eu apenas faco o que tenho que fazer. Ela murmura uma palavra ininteligivel, mas compreendo. Pego o caneco de agua, e a ajudo a beber. Assim que a cabeca dela repousa sobre o papelao, seus olhos semicerrados giram nas orbitas e sua mao que segurava meu braco cai sobre o concreto. E assim, ela tambem se foi. Sem nenhuma palavra ou gemido. Nao tive tempo de dizer nada.
Meus olhos estao secos. O tempo me tirou todas as lagrimas. Nao posso tira-la daqui. Nao tenho forças. Meu corpo franzino de 7 anos jamais conseguiria tal proeza. Entao, faco o que devo fazer. Cubro-a com seu lencol, murmuro adeus e digo que a amo. Pego meu proprio lencol e a caneca. É tudo que tenho. Caminho pela avenida, e nao olho para tras. Talvez, meus sentimentos me traissem e eu voltasse para abracar o corpo dela. Mas ja nao a mais vida ali. Entao, eu sigo em frente porque ainda a vida em mim.
Depois de dobrar em algumas ruas, estou totalmente perdida. Sento em uma calcada, e as pessoas passam por mim com medo. Como se eu fosse agredi-las ou rouba-las, coisa que nunca fiz. Depois de alguns minutos, um carro da PFAC sobe a rua vagarosamente. Inesperadamemte, ele para a minha frente. Me ergo com medo e quando penso em correr, uma voz grossa e masculina me chama.
- Ei, garota! Pare ai!
Minhas pernas estancam. Sinto meus bracos tremerem enquanto me viro. Um homem alto, moreno e com um cavanhaque que lhe deixa assustador, olha para mim de um jeito que nao sei explicar. Me da arrepios.
- Nao tenha medo. So quero lhe ajudar. - ele diz enquanto se aproxima com um sorriso enorme no rosto.  - Esta perdida?
Faco um gesto afirmativo com a cabeca.
- Venha comigo. Te levarei para um lugar melhor.
Naquele momento, eu estava com tanto medo e sem saber para onde ir que entrei naquele carro. Porem, eu nao sabia que eu estaria indo em direcao ao meu pior pesadelo.
Essa foi a primeira vez que vi Jackson, mas nao foi a ultima. Virei sua escrava em todos os sentidos da palavra. Nao me sentia mais humana. Eu so ainda nao havia enlouquecido de vez porque nao tinha tempo para pensar no que seria a lucidez. Ele me trancava em sua casa todos os dias. Eu nao podia falar, so obedecer ou era severamente punida. Houve dias em que desejei nunca ter saido do lado do corpo da minha mae. Houve dias em que gostaria de ter morrido como meus pais. E houve dias em que eu nao lembrava se existia outra vida alem daquela a que eu estava subjugada.
Porem, a esperanca nunca havia me deixado totalmente. Eu sempre verificava as portas e janelas depois que ele saia. Sempre estavam fechadas. Mas, um dia, ele deixou uma das janelas abertas e eu consegui escapar pulando o muro. Isto um ano depois da minha prisao. Meus olhos arderam ao encontrar a luz do sol, e por dois dias quase nao pude abri-los. Corri, corri mesmo sem saber para onde ir. Vaguei por ruas e becos com o medo me acompanhando a cada esquina. Me assustava com qualquer som ou movimento. Nao existia mais vida em mim. Eu era um bicho acoado.
Entao, um dia comecaram os surtos psicoticos. Um policial da PFAC me encontrou dormindo em uma praca e me abordou. Quando acordei e vi aquele homem sentado ao meu lado, Jackson se materializou em seu lugar. Cai no chao tentando me esquivar totalmente fora de controle. O policial se aproximou dizendo coisas que nao entendi. Eu so via Jackson. Dei-lhe um murro no rosto e corri. Desde aquele dia, qualquer pessoa se tornava meu carrasco.
Fui forcada a amudurecer antes do tempo. Eu era minha mae e meu pai a mais tempo do que me lembrava. Aprendi onde conseguir restos de alimentos mais frescos, onde dormir sem que nenhum policial me encontrasse, onde poderia me banhar na escuridao da noite e com quem poderia arrumar uns trapos para me vestir. E, principalmente, aprendi a me isolar do mundo para poder seguir em paz.
Eu sou o que chamam de inoperante. Uma pessoa incapaz de viver em sociedade. Nessa classificacao estao os deficientes (fisicos e mentais). Nao poderiamos conseguir um trabalho, e, consequentemente, nao conseguiriamos nos sustentar por sermos considerados mecanicamente impossibilitados. Nossa integridade era considerada totalmente ameacada.
Quando completei 9 anos, conheci o homem que mudaria minha vida. Ele tinha uns 50 anos, era careca e baixo com o corpo rolico. Ele era daqueles rostos que viviam com sorrisos pendendo dos labios apesar dos apesares. Demorou varios dias para que ele conseguisse se aproximar de mim. Fugi na primeira, acertei-lhe uma canelada nas partes intimas na segunda, e na terceira, ele me trouxe comida como atestado de rendicao. Entre uma colherada e outra, ele me fazia perguntas sobre onde estavam meus familiares. Quando viu que nao responderia, comecou a me contar historias. Depois de algumas semanas, eu ja conseguia sorrir de suas piadas e ate tinha vontade de contar a ele o que eu ja havia passado. Mas, apenas quando completou 2 meses em que ele me visitava diariamente, tive coragem para me abrir. Lembro que ele chorou bastante e ate quis me abracar, mas recusei. Eu nao conseguia abracar homens sem lembrar... Nao dava, mas ele compreendeu.
Logo, ele me perguntou se eu queria ir morar com ele e a mulher. Ele nao era pobre, tinha um emprego bacana, e daria para sustentar mais uma boca. Depois daquelas lagrimas, ele me conquistou como so um pai faria. O meu unico dever era conseguir entrar na escola, e futuramente na Universidade. Ele me falava isso todos os dias. Mas, nao chegava a ser chato. Me ajudava em tudo, e me fazia sentir aos poucos como um ser humano quase normal. Os surtos ainda nao tinham ido embora.
Eles diminuiram, é verdade. Mas, eles ainda me afetavam grandemente. Ate meu novo pai era alvo deles. Nos primeiros dias, tive vontade de fugir daquela casa. Nao que me tratassem mal. A minha nova "mae" me dirigia a palavra raramente e me olhava torto, mas me deixava em paz. Mas, o problema nao era eles. Era eu. Nao podia esperar que entendessem meus problemas. Eu nao queria causar infelicidade a eles. Nao mereciam. Nem tinham o dever de me ajudar. Eu sabia dessas coisas. Me sentia com um remorso enorme todas as vezes em que mais um dia de surto se passava. Eduardo nao era muito paciente. Ele nao teve filhoa, e nao sabia lidar muito bem com minhas dificuldades. Me dizia sempre para tentar controlar o medo, e esconde-lo. Se nao desse para acabar com ele que pelo menos eu tentasse fingir que ele nao existia.
O problema é que nao era algo que eu pudesse controlar. Era um trauma muito fresco em minha mente. Tudo o que eu havia conhecido ate ali era a dor. E ja fazia tanto tempo que estava acostumada a ela que parecia em vao lutar contra. Eu me sentia incapaz. Chorava todas as noites em minha cama porque eu nao era o que eles esperavam. Mas, no outro dia, Eduardo me falava de historias de superacao e que eu devia seguir o exemplo e ser forte. Dar um basta nos problemas. Eu dizia que iria tentar. Eu estava tentando, mas ninca foi o bastante.
Um dia, comecaram os pesadelos. Eles eram piores que as alucinacoes. Pareciam tao reais,e de la eu so fugia quando o sonho se dissolvia por vontade propria. Eu acordava aos gritos, mas ninguem vinha me socorrer. Eu ficava so na escuridao tentando acalmar meu coracao e meus sentimentos. Ate que nao gritei mais ao despertar. Mas, os sonhos iam ficando cada vez piores. Eu nao tinha vida no fim das contas.
As vezes, eu pensava que essa era a minha condicao. Iria sofrer por toda minha vida. Talvez a paz nunca fosse alcancada. Eu so estaria liberta dos meus fantasmas se eu pudesse esquecer o que tinha acontecido. E isso nunca vai acontecer.