domingo, 1 de junho de 2014

[Overrun: Sombras Ocultas] Capitulo 4

Minhas palpebras estao pegando fogo. Um laranja tao intenso se misturando com ondas de vermelho. Abro meus olhos com dificuldade e uma luz branca os fere. Estou olhando diretamente para o sol no meio de um ceu totalmente azul. Mas o que é isso? Onde estou? Me sento enquanto começo a recuperar a capacidade de enxergar. Minhas maos tocam algo macio abaixo do meu corpo. Grama. Tao verde e viva. Tao real. Me assusto e levanto rapidamente. Sinto uma vontade triste de descobrir onde estou e voltar. Voltar para os meus amigos. Mas, e se isso for o ceu? Me lembro vagamente da sensacao de estar caindo, caindo... e entao veio a escuridao. Talvez eu tenha morrido.
Me forço a olhar para o lugar ao meu redor e descobrir onde estou. Esse é o primeiro passo que qualquer pessoa perdida deve tomar. Localizacao. Bem, estou no meio de uma clareira e esta esta rodeada por uma floresta circular. Lembranças. Visoes. Sinto uma fisgada no minha cabeça quando tento associar esse lugar com um sonho que tive a muito tempo. Gabriel. Eu so espero que nao seja ele ou Juliana tentando se comunicar comigo atraves das suas magias negras. Tudo o que eu nao preciso agora é de mais um inimigo no meu encalço.
Tento lembrar do proximo passo no meu guia mental de sobrevivencia em visoes totalmente inesperadas. Passo 2°: Escolha um abrigo  como medida preventiva se estiver em um local totalmente visivel.  Estou relativamente vulneravel aqui. Começo a andar em direcao as arvores e nao consigo deixar de olhar de um lado para o outro. Tenho medo de que quando eu entrar naquela floresta um campo de força me mantenha la dentro como na outra vez. Mas, e eu tenho outra escolha? Olho para os meus pes momentaneamente e quando ergo meu olhar percebo que ainda estou no mesmo lugar. Medo. Dou alguns passos olhando para frente sem desviar o olhar. Estou andando. Mas quando olho para os meus pes la estou eu no mesmo lugar. Entao decido ir para o proximo passo. Passo 3°: se nada der certo, tente a comunicacao direta. Pense bem nas palavras. Minhas palavras soam estranhas e desesperadas.
- Olá?! Quem me trouxe ate aqui pode me dizer o que esta acontecendo? Nao posso ficar aqui...
O silencio ao meu redor é tao forte e palpavel que parece que estou dentro de uma caixa de vidro. Começo a ficar impaciente e tenho pavor da possibilidade de nunca sair daqui. Mas eu sempre estou me surpreendendo. Uma ventania começa bem a cima da minha cabeça e se espalha ao meu redor machucando a grama. Levo uma das maos aos olhos para protege-los enquanto o vento fica mais intenso. Preciso olhar. Preciso olhar. Levanto a cabeca devagar e o que vejo me tira o folego e eu quase caio no chao. Minha voz sai estrangulada.
- Konoch!!!
Ela pousa a minha frente e nem percebo quando corro para ela. Meus braços afundam no pescoço plumoso e ela recosta a cabeça nas minhas costas. Me afasto para olhar para ela para ter certeza que isso é real. Ou pelo menos tao real quanto possivel.
- Como? - a pergunta sai quase inaudivel.
Ela se senta nas patas traseiras e olha diretamente para mim. A sua voz enxendo todo o lugar. Toda a minha mente.
- Querida, voce me chamou.
Eu nao lembro de ter pensado nela naquele ultimo momento. So nas asas de Jeff...
- Eu morri?
Ela balança levemente a grande cabeça de aguia em um gesto negativo.
- Eu nao poderia deixar que isso acontecesse. Voce nao estava ao menos preparada para aquilo. - ela olha para o ceu de repente. - Nem os seus amigos.
Meus amigos...
- O que aconteceu com eles?! - grito.
- Fique calma. Eles estao bem. O melhor possivel.
Eu dou as costas para ela e começo a caminhar para longe. Mas la estou no mesmo lugar.
- Eu preciso voltar. Agora.
Ela se levanta e fica ao meu lado.
- Voce ira. Mas antes, esculte. Voces ainda terao mais um desafio a frente. E mais outros tantos em Ohtake. Dessa vez, fiquem atentos. Nao poderei mais salva-los.
Aquelas palavras rebatem dentro de mim.
- Como voce conseguiu fazer isso?  Voce fugiu?
- Nao, Laura. Eu morri naquela ponte. - a voz começa a diminuir. - Nao a mais tempo, querida. Eu gostaria que ouvesse. Mantenha o seu c...
De repente, senti uma tontura tao forte e meu corpo desabou na grama. Nao consegui ouvir o restante da frase de Konoch. Fui engolida novamente pela escuridao e quando acordei so havia a dor. Pulsante. E mais algumas coisas ao meu lado. Meus amigos. Sobre uma ponte de gelo.
Eu abro meus olhos e estou deitada de barriga para cima. Ao meu lado quatro corpos estao dormindo ou pelo menos eu acho que dormem. Nao consigo me sentar para olhar direito para eles. Nao consigo nem ao menos olhar para mim mesma. Me viro de lado e acabo encarando o rosto de Jefferson. Levo um susto e guincho. O rosto dele esta parcialmente queimado assim como um dos braços. Ele deve ter ficado bastante tempo dentro do casulo. Lagrimas descem por meu rosto quando levo minha mao para tocar seu rosto. Meu braço esta cheio de arranhoes e pela dor que sinto na perna direita devo ter quebrado ou deslocado algum osso. Toco a parte do rosto que tem apenas algumas bolhas e as palpebras dele tremem, mas ele nao acorda. Olho para as roupas dele e so entao percebo que a camisa branca virou apenas algumas tiras. O torax esta tao ferido quanto o rosto. Apenas a calça conseguiu permanecer sem ter sido consumida totalmente.
Vejo uma ponta vermelha surgindo das suas costas e lembro do que existe ali. Mais lagrimas. Me ponho novamente de barriga para cima para nao ver mais as feridas. Nao tenho coragem de olhar para os outros. Maldita planta carnivora.
Tento pensar em algo coerente a fazer. É obvio que nao podemos permanecer mais tempo nessa ponte. Nao a para onde fugir nem se estivessemos em condicoes. Um gemido corta meus pensamentos e olho na direcao do som. Marcelo esta tentando se sentar. Percebo que ele nao esta muito ruim como Jefferson. Seu corpo esta ferido e com bolhas, mas em poucos pontos nos bracos. Quando ele consegue se sentar, olha ao redor para ver se ainda a alguem vivo. Seu olhar encontra o meu e ele é tao desolado que é dificil manter as lagrimas paradas dentro dos olhos.
- Como viemos parar aqui? - ele murmura para si. Tao baixo que eu quase nao pude entender.
- Konoch. Eu estive com ela em algum lugar ou plano, nao sei. Ela nos salvou...
- Oh. Nem sei o que dizer.
- Devemos sair logo daqui. Eu sinto que ainda a armadilhas ao redor.
- Vamos tentar acordar os outros.
Ele me ajuda a levantar com muito sofrimento. Sei que Jefferson nao vai acordar agora e nem com qualquer puxao. Ele precisa de tempo. Entao, me abaixo ao lado de Anandi. Ela esta com a pele borbulhando em um tom de vermelho e marrom. A uma cicatriz na bochecha do lado direito que vai ate o canto da sua boca. Parece que a carne queimou de dentro para fora como em um choque de alta tensao. Seguro seus ombros o mais firme que posso e a balanço. Nao tenho coragem de olhar para seu rosto por muito tempo. Ela exala um cheiro de carne queimada e sangue. Sei que ela vai ficar com uma cicatriz no rosto por toda a vida depois disso. Maculando seu rosto belo.
Ouço um pequeno chiado e vejo que vem dos labios dela. Ela chama por alguem, mas nao consigo distinguir o nome.
- Anandi? - chamo e balanço-a. - Voce pode se sentar?
- Jefferson? - ela chama em meio a um delirio.
Seus olhos se abrem e me fitam cansados. So agora percebo que sao verdes. Um tom de verde-musgo.
- Sou eu, Anandi. Laura.
- Ela fecha os olhos novamente como se eu fosse a ultima pessoa que ela gostaria de ver.
- Pode ir. Estou... bem.
- Voce nao esta nada bem.
- Por favor, vá! - ela diz em um comando raivoso.
Me levanto com muito esforço e vejo Marcelo conversando com Diana que esta deitada com os bracos sobre o rosto como se estivesse encarando o sol. Suspiro. Me sento ao lado de Jefferson e tento encarar apenas seu rosto. Nao tenho coragem de olhar para suas asas. Sinto o cheiro de sangue mais forte do que qualquer outra coisa. Puxo a cabeca dele para minhas pernas e aliso seus cabelos. Estao molhados de suor e tao compridos. Passo os dedos por seu rosto na area onde o liquido nao conseguiu queimar. Sinto um tremor sob minha mao e observo atenta Jefferson abrir os olhos com dificuldade e virar seu rosto para mim. Ele sorri mesmo em meio a dor.
- Laura...
Ouço meu nome tao leve em seus labios e ele repete mais uma vez quando ve um sorriso se formando em meu rosto. Mal posso enxerga-lo com meus olhos embaçados pelas lagrimas antes de me jogar em seu corpo fraco. O aperto firme mesmo quando sinto as penas molhadas com um liquido quente tocarem a palma da minha mao. Afundo meu rosto em seu pescoço e choro em seu ouvido enquanto me pergunto, "Quando tudo isso chegara ao fim?"

                            +++

A muito tempo nao tive mais nenhuma necessidade humana. Mas agora minha boca parece tao seca e posso jurar que sinto graos de areia passeando por ela. Claro que nao é uma sede fisiologica. É algo psicologico, como se o corpo estivesse se lembrando da sensacao. Depois de algumas horas de descanso e de Marcelo e Diana terem doado um pouco de suas essencias para Jefferson e Anandi que estavam mais machucados, voltamos a percorrer o nosso caminho em direcao a Ohtake. Nao aceitei nem um pouco da essencia deles. Tenho apenas alguns machucados nos bracos que parecem estar se curando um tanto rapido demais. Olho para baixo, onde minha mao esta unida a de Jefferson. Na outra seguro firme o cabo da adaga que permaneceu brilhando apos o ataque aos cipos. A unica arma que esta com carga total e que pode servir de alguma ajuda. As asas de Jefferson cicatrizaram depois da doacao que recebeu e foi um alivio para mim poder vê-lo quase como antes. Nao gosto de ve-los sofrendo. Nem mesmo Anandi que agora esta andando lado a lado com Jefferson e olha para ele pelo canto dos olhos. Me sinto responsavel por eles mesmo sabendo que nao sou a unica Overrun aqui.
Vejo a mao de Marcelo erguida a nossa frente indicando que devemos parar para mais um descanso. Nos sentamos em um circulo silencioso e acabo cortando-o para contar-lhes sobre o que Konoch me disse. Falo sobre o lugar, suas palavras sobre os perigos de Ohtake. Quatro rostos me olham com aspectos cansados.
- O que voces acham que nos aguarda por la? - pergunto.
- Bem, eu ja ouvi algumas coisas sobre essa cidade. - Diana diz olhando para o chao.
- Nos conte o que sabe. - Marcelo pede.
- Essas cidades por onde passamos fazem parte de lendas. Poucos anjos ja atravessaram do lugar de onde viemos para uma delas e voltaram para contar a estoria. Bem, eu acabei ouvindo algo sobre Ohtake. Dizem que os anjos que habitam o lugar nao sao hospitaleiros e sao bastante rudes com forasteiros. Eles se escondem nas sombras das arvores secas que surgem no meio do canion conhecido como o lar deles. O lugar todo parece ser assombrado.
- Tem certeza que sao anjos que vivem la? - Jefferson pergunta ironico.
- A maioria dos anjos que vivem nessas cidades se isolaram do resto depois de saberem para que foram criados. Se rebelaram nao querendo participar de uma luta contra os demonios a favor dos humanos e se esconderam em diversos planos. - ela conta seria.
- Voce sabe algo sobre o guardiao do outro pedaco do amuleto? - pergunto.
- Ouvi dizer que se trata de um grande lobo alado branco. E nao parece gostar de visitantes tambem.
- Um lobo alado? Todos os animais sao alados aqui? - digo surpresa.
- É a representacao do espiritual com o terreno, Laura. Sao especiais. - ela responde.
- Sera que ele vai nos ajudar como Konoch fez? - Jefferson pegunta.
- E tambem o dragao vermelho. - Anandi completa.
- So saberemos depois que a Laura pegar o amuleto. - Marcelo afirma.
- Suponho que a Anandi deve ir comigo. Nao sou mais a unica Overrun aqui. - digo lancando um olhar de desaprovacao para ela que cruza os bracos.
- Tambem nao precisa chorar, Laura. Se eu dei conta de um dragao quanto mais de um lobo.
Quando abro minha boca para responde-la Marcelo levanta nos chamando para seguir em frente.
Meu rosto esquenta enquanto o sangue sobe ate meu cerebro. Quando eu estiver sozinha com ela imagino que nao irei me segurar diante de tanta arrogancia que ela joga em cima de mim. Tudo porque ela se encantou por Jefferson.
Caminhamos por mais algumas horas sem ver nada de novo, so o caracteristico uivo do vento em nossos ouvidos. Ate agora parece que nao existem armadilhas ou barreiras. Paramos mais uma vez para descansarmos e Marcelo diz ter um pressentimento que estamos quase chegando em Ohtake. Ele sentiu uma força obscura fluindo a frente e compreendeu que estamos bem perto de lá.
De repente, senti um calafrio subindo por meu pescoço que acaba me assustando. Como se algo frio tivesse me tocado. Me ergo das pernas de Jefferson onde minha cabeca estava repousada e olho adiante. O som nos meus ouvidos se foi e sempre que ele se instingue algo ruim esta chegando.
- Acho que tem algo se aproximando. - digo enquanto fico de pe ja com a adaga em punho.
- Tambem estou sentindo algo. Um espirito. - Diana sussurra.
Ficamos todos estaticos olhando fixamente para a nevoa e tentando ver o que se espreit por ela. Anandi esta um pouco a frente com os bracos cruzados segurando o stin firmemente. Sinto a nevoa fria se movendo com uma brisa misteriosa do meu lado esquerdo e olho para la rapidamente. E nesse momento um grito me assusta. E volto meu rosto para a ponte novamente.
Anandi esta com o stin em forma de bastao o empunhando em defesa. Algo nao muito distante dos seus pes se materializa em uma nevoa negra. É tudo tao rapido que ninguem tem tempo de afasta-la da coisa e em sua frente um animal de pelo vermelho se abaixa como se para saltar e rosna agressivamente. Anandi golpeia o animal com o bastao e ele se torna nevoa no momento em que o objeto passa direto por ele. Ela salta para tras com o rosto contorcido em surpresa e a nuvem negra se volta para tras se metamorfoseando novamente no animal laranja. Ao meu lado, Marcelo e Diana trocam um olhar e parecem calmos como de conhecessem a tal coisa. Aperto os olhos para tentar enxrgar melhor o animal porque seu corpo tremula como se ele nao conseguisse manter a forma por muito tempo. Percebo que se trata de algum tipo de raposa da neve do tamanho de um cao pastor-alemao. Ela encara Anandi com sangue nos olhos, o odio ali é quase palpavel.
- Nao se assuste, Anandi. Ela é um Jing, um espirito localizador. - Diana diz o mais baixo e audivel possivel. - Ela deve querer te mostrar alguma coisa.
Anandi se volta para Diana com o rosto raivoso e confuso.
- Dessa maneira? Parece mais que ela quer me mostrar suas garras.
- Jings so se curvam depois de capturados. Voce tera que faze-lo ou ela nao te deixara em paz por todo o caminho.
- So faltava essa... - Anandi murmura para si. - E como eu vou capturar essa coisa? - ela aponta para a raposa que esta agachada com os dentes a amostra, avaliando-a.
- Com isso.
Diana joga algo como uma corda para Anandi que a agarra facilmente. Ela analisa o artefato entre os dedos e parece cetica.
- Uma coleira? Como vou por isso em um espirito?
- Ela esta encatada e tem o pingente com o simbolo dos Jings. Lute e encontre uma maneira.
Diana pede para que nos afastemos para dar espaço para que Anandi consiga lutar com o Jing sem que caia da ponte. Ela se coloca em posicao de defesa segurando o bastao frente ao corpo e com a outra mao segurando a coleira entre os dedos. A raposa vendo o gesto da garota mostra ainda mais os dentes e se abaixa para o ataque. Ela pula sobre Anandi que desvia com um pulo de lado e gira o corpo acertando a cabeca do animal por tras que guincha de raiva. O Jing circula Anandi que faz o mesmo ate que ela resolve partir para o ataque. Percebendo que se o ataque vier por tras a raposa nao se metamorfoseia, Anandi corre para o animal o mais rapido que pode saltando por cima dele. A raposa ergue a cabeca confusa enquanto ve a garota voando e aterrisando as suas costas e com um movimento rapido saltando em seu pescoco. Anandi e o Jing rolam na ponte e ouço gritos abafados da garota que tenta se manter firme enquanto a raposa acerta mordidas em seus braços. Quando acho que as duas vao cair da ponte, Anandi coloca a coleira no pescoco da raposa. Imediatamente a mesma se aquieta perplexa e sai um pouco para longe de Anandi que se ergue do chao. O animal olha para ela com curiosidade parecendo bem diferente de agora a pouco.
- Pronto. - ela diz arrumando os cabelos revoltos.
- Ela quer falar com voce, querida! Agora é sua responsabilidade. - Diana dia rindo.
- Falar comigo? E isso seria como?
- Se abaixe e toque a cabeca dela.
Anandi parece com medo por um segundo, mas logo ela empurra isso para tras de sua mascara arrogante. Ela se abaixa frente ao animal que leva o focinho em direcao a mao erguida dela. O olhar de Anandi paraliza de uma maneira estranha por um momento ate que ela afasta a mao para longe do Jing.
- Ela me disse que seu nome é Mei e que vai nos levar ao portal para Ohtake.
Anandi caminha em minha direcao e para em minha frente apontando o indicador de uma maneira ofensiva.
- E um recado para voce. Yuan esta lhe aguardando. - ela diz me dando as costas com Mei aos seus pes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário