quarta-feira, 25 de junho de 2014

[Crônica] Vagando na Beira do Abismo

Eu não estou bêbada. Estou mais sóbria do que em todas as noites. Não ingeri nenhuma gota de alcool, nem ao menos senti um aroma ou o bafo de alguém que talvez tivesse me acompanhado. Talvez se você passar por mim agora veja no modo como meu olhar se perde na lata de lixo, como as chaves pendem perigosamente na ponta do indicador, na maneira como meus passos parecem desordenados; uma mulher desvairada, quase enlouquecida. Mas eu estou bem.
Pelo menos, é o que repito a mim mesma a cada passo que dou.
A avenida esta bem iluminada, mas não a quase ninguem para ver a minha aventura noturna. Pessoas passam por mim ocasionalmente. Eas me olham com rostos de nojo, pena ou qualquer uma dessas expressoes que elas costumam carregar para depositar nos outros o que elas evitam demonstrar a si mesmas. O maximo que eu faço é afastar o olhar para o outro lado. Nem mesmo se elas me dirigissem uma palavra poderia mudar alguma coisa na minha vida. No fundo eu sei quem sou. Uma mulher solitaria, uma casa vazia com a qual tenho que lidar depois de um dia vazio de trabalho. Eles realmente nao podem me ajudar.
Nao sei para onde estou indo, onde quero chegar. Sinto apenas a urgencia de andar, de me afastar das coisas que me fazem lembrar dos meus dias. Me escoro nos muros, nas cercas, nas grades enquanto meu olhar se perde por vezes seguidas em um ceu onde nao existem estrelas. Eu rio comigo mesma. Nao sou apenas eu que estou vazia e apagada. Entao, obrigo meus pes doloridos a colocarem o caminho para tras. Ah, se eu pudesse simplesmente deixar tudo para tras.
Em uma esquina vejo um casal sorrindo enquanto tiram uma selfie com um celular. Suspiro. Quando o flash se deposita sobre o corpo deles enquanto aquele momento é eternizado, eu sou cegada pela luz. Pelas lembrancas. Passo por eles no momento em que se abraçam e o rapaz deposita o celular no bolso. Deixo-os para tras tambem, mas meus olhos ainda ardem. As vezes, as lagrimas sao como laminas de fogo. Queimam, cortam, pinicam. Doi em tantos pontos fora das orbitas que meu corpo inteiro convulsiona.
Agora quem sabe quando voce passar por mim tenha a certeza que estou bebada. Uma mulher esterica, poças brilhando no rosto, o cabelo desalinhado por onde as maos freneticas passaram tentando se acalmar. Uma mulher devastada. Mas nao ligo para o que voce pode pensar sobre isso. Hoje voce lembra de mim. Amanha ja nao sou nem um grao de areia no deserto dos seus pensamentos. Entao, nao adianta parar para pensar nisso.
Em algum ponto entre pernas tremulas e a tontura crescente resolvo me sentar na calcada, os pes descansando no asfalto. Mas nao a perigo. Ninguem em sã consciencia esta na rua a uma hora dessas. Exceto, bem, eu. So porque estou momentaneamente desequilibrada.
Amanha volto a usar uma daquelas mascaras que eu guardo no fundo da primeira gaveta do armario. Tem para todos os gostos, para todas as ocasioes. Mas agora estou com aquela que nao sai por mais que eu tente. Aquela que eu encubro com tantas outras para ninguem ver quem realmente eu sou. Hoje nao a ninguem para ver, entao posso me libertar por um momento.
Estou olhando diretamente para o ceu agora. Nem percebi quando tombei no concreto. As lagrimas ainda estao descendo por meu rosto. Por um momento, penso que uma poça se formou embaixo de mim, mas é apenas o frio do chao encontrando um caminho pela minha blusa. Resolvo dar atencao aos meus pensamentos pela primeira vez em semanas. É um alivio tao forte como o de tirar o sutia suado apos um dia fatidico. Fecho os olhos e as visoes embacam minha mente. Pais que nao existem mais, irmaos longe demais agora, uma casa apagada em algum lugar estranho, um cara que a muito tempo eu fui impulsionada a deixar no passado. Abro meus olhos quando tenho um choque. É aquele instante que voce tem vontade de mudar tudo. De começar de novo, de ligar ou mandar uma mensagem para quem se afastou, de pedir desculpas pelas montanhas de erros... E agora é aquele instante em que voce tomba mais fundo no chao quando percebe que nao tem força para nada.
Nem mesmo para levantar, afastar o cabelo do rosto, as lagrimas dos olhos e inficar o pe no chao e andar de volta para casa. Entao, eu me deixo ficar. Por mais um minuto, uma hora, uma madrugada. Talvez eu esteja mesmo bebada. Alcoolizada pela força de uma vida inteira.

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